2। Registro de identificação de Adão Bernardino na Sociedade Humanitária Operária। Fonte: Acervo da CSPC e MNC
3. Foto de Agostinho dos Santos trabalhando como Guarda Civil em São Paulo, em 1947. Fonte: Acervo da CSPC e MNC
Carolina Bortolotti de Oliveira e Gabriela Veras Iglesias
O primeiro registro sobre a existência de um possível museu na residência situada na rua Emílio Ribas dá-se em 15 de agosto de 2001, quando Geraldo Mendes, que havia comprado aproximadamente 18% do imóvel em 1994, o indica para tombamento, por ser um dos últimos exemplares de existência e interação da comunidade negra na região do Cambuí. A notícia de tombamento não é bem aceita, a principio, pelo senhor Agostinho que possuía os 82% restante da casa e, portanto, sua posse. Porém, em julho de 2002 vende sua parte ao Geraldo Mendes e passa a abraçar a causa, tornando-se a principal referência de uma memória viva sobre um passado que a casa materializava: um reduto da convivência de uma comunidade negra que, durante décadas, refletiu o processo de integração entre a comunidade negra livre e a sociedade branca da região. Em 2002, o Museu abrigava um pequeno acervo de pertences referente à família Santos, que se destacara na comunidade como uma família com boa posição social dentro de uma sociedade pós-abolicionista: tratava-se dos registros de Adão Geraldo dos Santos, Adão Bernardino dos Santos e Agostinho dos Santos. O primeiro objetivo proposto para o local era o de sua utilização como ponto de atividade entre a atual comunidade negra, contribuindo, dessa maneira, com o movimento de resistência que, todavia, persiste em nossa sociedade, a trajetória da Família Santos. A casa está localizada no quadrilátero delimitado pelas ruas Emílio Ribas, Santo Antônio, Antônio Lapa e Sampaio Ferraz. Muitas famílias de negros viveram nessa área do Cambuí, já na primeira metade do século XIX, constituindo uma comunidade que se caracterizava, principalmente, pelo cultivo agrícola e de subsistência. O bairro, nessa época, era considerado periferia da cidade e passagem de tropeiros – onde está situado o Largo de Santa Cruz - havendo apenas fazendas nessa região. Posteriormente, com a abolição dos escravos, formaram-se vários cortiços neste mesmo local, na transição do século XIX para o século XX. Enquanto isso, a burguesia enriquecida pelo café mostrava seu status arquitetônico através dos palacetes e das residências requintadas, principalmente no entorno da Praça Imprensa Fluminense – hoje o Centro de Convivência - junto à Avenida Júlio de Mesquita. Logo após a abolição e com a chegada dos imigrantes, os trabalhadores negros ficaram marginalizados na economia cafeeira da região de Campinas, concentrando-se no campo ou em trabalhos informais. Neste contexto, Adão Geraldo dos Santos, filho de escravos e nascido em 1880, se destaca por realizar um trabalho mais independente, que envolvia relações sociais e habilidades específicas: tratava-se de seu empreendimento familiar na área de transporte de tração animal - o coche - utilizado intensamente na locomoção de pessoas e de cargas advindas dos fluxos diários da Companhia Mogiana e da Companhia Sorocabana. Com o sucesso do trabalho, ele adquire um lote de terreno da antiga fazenda, que pertencia à família Bueno de Miranda, onde inicia a construção de sua casa, e futuro Museu do Negro, em 1911. Visando adequar a estrutura do local para o empreendimento que realizava, constrói nos fundos uma cocheira e um estábulo e, no terreno ao lado, um bebedouro para cavalos. A atividade envolvia toda a família, sobretudo seu filho mais velho, Adão Bernardino, que também herdou do pai a profissão de cocheiro. Nas duas primeiras décadas do século XX, Campinas crescia rapidamente, fruto das estradas de ferro que rasgavam o interior paulista, transformando-a de uma simples província em um centro cafeeiro. Para acompanhar essa conjuntura enriquecedora, o surgimento da energia elétrica foi fundamental para potencializar algumas técnicas e reciclar outras, como a dos bondes de tração animal e dos trens de tração a vapor, os quais, respectivamente em 1911 e 1921, seriam substituídos pela tração elétrica. Adão Bernardino, que dava continuidade aos negócios do pai, falecido em 1914, percebe simultaneamente as dificuldades do trabalho. Impossibilitado de manter e modernizar o empreendimento paterno perde a posse dos coches e passa a trabalhar como maleiro na estação ferroviária, onde foi registrado, em 1953, como carregador. Entretanto, lá o trabalho era mais lucrativo, considerando os recebimentos paralelos das comissões, sobretudo por sua qualificação distinta em falar um pouco de outras línguas e praticando sua habilidade eventualmente com os passageiros estrangeiros com quem tinha contato. Tendo constante preocupação com os empreendimentos e a estabilidade financeira, recorre a várias associações existentes que “visavam prestar serviços à população de cor, numa tentativa do negro criar um mundo paralelo ao do branco, em resposta às suas dificuldades ou impossibilidades de sobrevivência, não apenas física, mas também cultural.” Estas abrangiam desde a assistência hospitalar e funerária até a organização político-social, que muitas vezes se originavam no próprio trabalho. Temos registro de que Adão Bernardino associou-se a vários tipos, tais como a Liga Humanitária dos Homens de Cor, em 1934, a Sociedade Beneficente Isabel Redentora, em 1936, e a Associação Humanitária Operária em 1934. Dessa maneira, conseguiu viabilizar vários investimentos para a família, chegando a adquirir, no fim da vida, um patrimônio constituído de dois terrenos e três casas, entre elas nosso atual museu, que foi herdado pelo seu filho, Agostinho dos Santos. Nascido em 1925, ele pertence à terceira geração e pôde desfrutar as melhores condições financeiras e sociais da família, sempre tendo os estudos pagos pelo pai e sendo fundamental a passagem pelo Colégio São Benedito, que teve papel importante no “processo de afirmação do homem negro campinense livre, enquanto cidadão e ser capaz de perfeitamente integrar-se ao modelo, idealizado pelo grupo branco, de qual deveria ser o lugar do negro na sociedade”. Formou-se no curso técnico de contabilidade no Colégio Bento Quirino, porém, por não encontrar emprego nesta área, ingressou na guarda civil em 1947, em São Paulo, cidade onde, pelo fato do número de guardas negros ser maior, a perspectiva de uma situação melhor era crescente, além de propiciar certa posição social como policial civil. Sempre que seu pai ficava doente, vinha a Campinas para ajudá-lo em sua recuperação, porém, numa dessas ocasiões, Agostinho se fixa momentaneamente na cidade, passando a ser permanente desde de 1972, ano da morte de seu pai. Desde a primeira geração, a família Santos teve como concepção religiosa o catolicismo, passando de pai para filho o costume de ir as missas e prestar devoção aos santos católicos. Em seu depoimento, Agostinho nega o envolvimento de sua família com a cultura religiosa de raiz negra, o candomblé, afirmando que a maioria dos negros que conhecia eram católicos. Este cenário reflete, portanto, a situação delicada acerca da questão religiosa dentro da comunidade negra em meados do século XX. Havia uma dualidade entre os próprios negros no que se refere à concepção religiosa. Dividiam-se entre os que seguiam o culto da religião de origem negra, sofrendo como conseqüência forte repressão por parte da população civil e militar, uma vez que eram vistos como feiticeiros; e os que freqüentavam as Irmandades, sobretudo a Irmandade de São Benedito, local que propiciava uma inserção do negro dentro da religião católica, predominante na sociedade campineira. Dessa forma, fica claro que para ser aceito no convívio social enquanto cidadão negro livre, o fato de freqüentar uma Irmandade era vantajoso e muitas vezes necessário, o que provocou em várias gerações o completo afastamento da religião de origem. Desde o desenvolvimento deste estudo, realizado para o histórico do processo de tombamento na CSPC , muitos fatores ocorreram modificando o rumo do Museu do Negro, entre estes o falecimento do Sr. Agostinho, em maio de 2004. Desde então, o local mantém as visitas e os diálogos com a comunidade, mas focaliza especialmente a área artística, uma vez que o local foi cedido como ateliê para Aluízio Geremias, artista plástico negro que, vivenciando os cordões de carnavais de Campinas, retrata-os em suas obras.
Carolina Bortolotti de Oliveira, Arquiteta e urbanista, especialista em Patrimônio Arquitetônico, mestre em Urbanismo pela PUC-Campinas.e-mail: linabortolotti@yahoo.com.br
Gabriela Veras Iglesias, Graduanda em História pela USP.e-mail: gv.iglesias@gmail.com
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